Eu fui caminhar. Era praia o cenário. Bahia era o cenário. Mais especificamente, Salvador. E enquanto eu caminhava, meu pensamento perambulava sobre as páginas de Internet que vasculhei entre ontem a tarde e hoje de manhã, falando sobre as discussões de todas as ordens geradas a partir do comentário de uma estudante de direito sobre os nordestinos.
Eu li de tudo ontem. Desde o sujeito dizendo "morte aos nordestinos", ao sujeito que dizia "paulistas fedorentos" ou algo assim. Ódio pra lá, ódio pra cá. Minha atenção ficou mais voltada para isso quando, nas atualizações de meu perfil, fui confrontada com afirmações (e argumentações) bastante confusas sobre o "problema" dos nordestinos. Tudo em erupção depois de uma campanha política de baixo nível, de um lado e de outro. Os pensamentos que já estavam lá, em uma população que cada vez mais acredita que faz sua parte, mas que os outros não.
Esses "outros" percorrem a história do Brasil há tempos. Estereótipos de um povo "jeca", paradigmas de nossa nação, são encontrados em Jeca Tatu, Zé Povo, Mazzaropi. Eles sempre são os outros, os que não sabem, os que não merecem, os que não tem.
Da idéia de um povo que não sabe votar - e que não sou eu - e de um povo que só sabe festar - e que também não sou eu - concretiza-se um movimento de #orgulhodenãosernordestino. De ódio, de preconceito, de estereótipos.
Eu estive em uma cidade do Sul do Brasil e lá, ao dizer que vivia na Bahia, ouvi piadas de todos os tipos, de gente que em nada representa o estereótipo. Era a gente que supostamente vota bem, que supostamente exerce bem seu direito e DEVER de cidadão. Os comentários todos expressavam a idéia de um povo que só sabe festar, de um povo que tem preguiça de trabalhar, de um povo, apesar das características anteriores, "acolhedor", como insistem em dizer os anúncios turísticos.
Dessa brincadeira aparentemente boba depreende-se o estereótipo de um povo que, supostamente, não trabalha, e vive de Bolsa Família. Mas você quer um bom exemplo?
No interior da Bahia, onde o IDH varia de 0,77 a 0,52 (enquanto no interior de São Paulo varia de 09, a 0,8), uma mulher/menina trabalha por 80 reais por mês como empregada doméstica, morando na casa dos empregadores. Justamente por morar na casa deles e, portanto, não pagar supostamente aluguel ou ter qualquer gasto, paga-se 80 reais. Eu frizo: por mês. Muitas dessas meninas/mulheres vêm para Salvador com a expectativa de ganhar um melhor salário, e ganham então um salário mínimo e, quem sabe, um vale transporte para ir ao trabalho. 5 reais e 4 horas dentro de ônibus circulares massacrantes e perigosos são, em geral, necessários para ida e vinda no trabalho.
Essa mulher que ganha 80 reais a hora passa a reivindicar um melhor salário quando o Estado apresenta a ela uma melhor possibilidade. E os patrões são pressionados a melhorar o salário para manter essa funcionária em sua casa. É a lei da oferta e da procura.
Outro caso: trabalhadores, no interior da Bahia, chegam a ganhar 10 reais por dia para trabalhar em lavouras. Trabalhando 30 dias, ininterruptamente, o sujeito ganha 300 reais. E você poderia dizer, "ah, está ótimo para quem mora em lugares em que se gasta menos". Ainda que eu possa discordar dessa argumentação, não é aí que está o drama. O problema? O patrão cobra dele, ainda, o almoço, caso ele não traga sua própria refeição. O que faz o salário dele saltar dos incríveis 300 reais a 150 reais, por mês.
Quando vejo a imagem que as pessoas têm da Bahia - e do Nordeste como um todo - como um lugar de vagabundos, de pessoas que vivem atrás de trios elétricos, não sou capaz de entender a partir de que momento essa imagem fantasiosa passa a se constituir uma fantasiosa realidade. São eles o nosso Zé Povo.
Ladrões há, porém, em toda parte - e isso não é vantagem nem para o Nordeste, nem para o Sudeste. Basta ler com mais atenção os jornais ou buscar melhores informações para perceber que Serra, Sarney, Dirceu e Pallocci podem estar envolvidos em escândalos muito parecidos. Portanto, não se trata aqui de defender os honestos contra os corruptos; os verdadeiros cidadãos, dos malandros, como o processo eleitoral pareceu suscitar, e o movimento "ódio ao nordestino" pareceu consolidar.
Não se trata então de desenvolver e/ou fomentar ódio aos nordestinos e colocar neles a "culpa" que, se existe, é, na verdade, de todos nós. A falta de Educação "deles" é também nossa falta de Educação, a falta de conhecimento "deles" é também a nossa. E quando se justifica tanto ódio na eleição de um suposto candidato corrupto/ladrão por esses mesmo "eles", há também muito o que se refletir.
Ao furar uma fila, ao subornar um garçom para conseguir uma mesa, ao não respeitar as leis de trânsito, estamos todos infringindo leis, normas. Assim como os governantes que roubam milhões. Você pode dizer: que absurdo sua comparação! Mas basta ir a um país extremamente organizado como a Alemanha, por exemplo, para perceber que cada indivíduo entende seu DIREITO e DEVER como cidadão, e respeita leis - e os cidadãos.
A História ensinou a eles aquilo que a escravidão não nos foi capaz de ensinar. Os traumas sofridos por uma civilização massacrada pelo preço do trabalho escravo ainda não foram devidamente recuperados e refletidos em nosso país.
Enquanto isso, seguimos culpando os outros, os Mazzaropi de nossa nação, de todos os erros, da miséria, da preguiça, da falta de desenvolvimento, da corrupção. Todavia, te dou aqui uma sugestão. Vá a São Paulo e veja quem são TODOS os que movimentam o trabalho da cidade. Eu disse todos, justamente para mostrar que não há aqui uma separação entre os bons do Nordeste e os maus do Sudeste, como se poderia querer inferir de meu texto. Vá a Salvador e veja quem está pulando atrás dos trios durante o carnaval. Vá ao interior de qualquer lugar do Nordeste e perceba o que a população que vive em pobreza e miséria absoluta precisa.
O Bolsa Família pode não ser um programa perfeito, mas tem trazido a essas famílias condições que, para boa parte dos que moram em São Paulo (ou ao menos para as pessoas do Sul e do Sudeste que podem se manifestar pelas diferentes mídias), está garantida desde o nascimento.
Não se trata, portanto, de separar "sulistas" e "nortistas", bons e maus, inteligentes e burros, honestos e corruptos. Trata-se de reconhecer que o Brasil é uma imensa nação, com discrepâncias do tamanho de suas fronteiras. E que nós, tão pequenos, seremos incapazes de apreender toda essa diferença, se não nos propusermos a olhar verdadeiramente ao redor, visitar comunidades carentes, entender as diferenças e dificuldades de cada região.
De "superioridade" já basta o que Hitler tentou nos mostrar. E, depois de muitos mortos, falhou.
Da próxima vez que vier a Bahia, ou a qualquer outro lugar do Nordeste, e caminhar pelas areias de uma bela praia, procure também entender a história daquele povo, daquele Estado. E exerça sua cidadania aqui também, não só dentro dos muros da realidade em que você vive, sem miséria, com muito Orkut, Facebook e Twitter. Ser um cidadão respeitado requer exercer direitos e deveres. Mas isso já é um clichê enorme. Não?